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Introdução

Niobe Xandó

 A arte de subverter a ordem das coisas

 

“O importante é descobrir em nós, que fazemos parte da realidade,

uma escrita interior que caminha para a descoberta orgânica de nós mesmos;

sem ter medo de mergulhar em plena terra,

em plena água, em pleno fogo, em pleno ar”.

 Pierre Alechinsky, Abstraction faite, Revista Cobra, n° 10, 1951

 

“O trafegar no mundo da fantasia é fato normal; bem-vindos os exageros”.

Pietro Maria Bardi, 1983

 

  Reconhecida como artista de peculiar originalidade nos seus mais de 50 anos de contínua e intensa atividade, Niobe Xandó tem experimentado uma justa e merecida visibilidade. Seu trabalho resultou numa obra sólida e múltipla, de evidente atualidade, baseada em experiências pessoais únicas, com uma sensibilidade muito própria.

  Niobe mereceu mais de 130 textos de renomados críticos do Brasil e do exterior. A forte característica de liberdade de criação, aliada a um caráter lúdico, é uma constante, assim como a sensação de não finito presente em toda a sua produção confirmando a idéia de uma obra em contínua evolução e pesquisa.

  Sua passagem aparentemente acidental pelas diversas tendências e pelos menos divulgados movimentos, bem como a sobreposição de períodos e abordagens que ela promoveu no interior de sua obra, criam inúmeras possibilidades de interpretações.

  Foram necessários alguns anos de pesquisa e convivência e certa dose de ousadia para se concluir (e, assim mesmo, isso admite prova em contrário) que Niobe

  Xandó é, enfim, uma criadora notável, cujo trabalho poderia ser incluído com justiça, no projeto do Dadaísmo!

  O movimento Dada, grosso modo, é uma forma de revolução artística, que não se preocupava com a lógica e se utilizava, também, de objetos do cotidiano para transformá-los em arte.

  O grupo Dada surge em 1916, em Zurique, na Suíça, com a união de jovens franceses e alemães.

  Naquele momento, se vivessem em seus países de origem, eles teriam sido convocados para lutarem na Primeira Grande Guerra, que, literalmente, devastou a civilização ocidental como era vista e identificada até então.

  Esses jovens, exilados na nação tradicional e convenientemente neutra, eram contrários ao envolvimento de seus países e, assim, o Dadaísmo nasce como um movimento de negação.

  No início aparece como uma manifestação mais de caráter literário, de acusação à incapacidade da ciência, da religião e da filosofia de se mostrarem eficazes para evitar tamanha destruição.

  Niobe Xandó nisso tudo: De líquido e certo, na verdade sempre relativa, é possível afirmar que nossa patrícia produziu um pouco (ou muito) de tudo o que os dadaístas experimentaram. Criou uma arte única e lúdica e nunca se importou se o seu trabalho poderia, ou deveria, ser incluído neste ou naquele movimento. Em grande parte por influência de seu marido, Alexandre Bloch, conviveu com intelectuais de várias áreas da cultura, mas, no fundo, fez questão de se manter a parte das teorias e academicismos.

  Conheceu, em Paris, Maurice LeMaître [1926], o organizador do grupo dos Letristas, que era, enfim, um filhote indireto do Dadaísmo. Ele gostou de suas obras e sugeriu que ela se ligasse ao grupo. Porém Niobe, com discrição, mais uma vez não se ligou a movimento nenhum. Foi autodidata na sua formação e livre na sua criação. Não foi em nada previsível. Silenciosa e reflexiva, esteve antenada com tudo de sua época. Exercitou o automatismo psíquico que é uma das chaves para desvendar os dadas. Absorveu e transformou em arte tudo que estava à sua volta. Fez arte com os objetos do cotidiano. Fez pintura, desenho, colagem, objeto, frottage, escultura e reprografia.

  Usou os mais inusitados materiais e técnicas: bambu, crânios de macacos, dentes de animais, sementes, pintou toalhas de crochê e, bem antes da moda ecologista, materiais reciclados. E mais interessante ainda: jamais se auto-integrou ao movimento Dado, que pouco ou nada lhe despertava interesse. E é por essa mesma razão que se pode ter a relativa tranqüilidade de incluir Niobe Xandó como uma legítima representante dada, porque, como uma criança livre e feliz, negou quase tudo que fosse previamente estabelecido e só se agarrou, com unhas e dentes, ao seu cavalo de pau: sua imaginação e seu talento.

  Produziu uma obra que vai merecer, ainda, anos de estudo para ser devidamente entendida e apreciada e que, mesmo tendo sido criada no espírito de negação, afirmou continuamente o único valor que norteou sua vida: o prazer de criar com prazer!

  As suas obras de síntese também poderiam ser definidas como o resumo artístico de uma vida toda ela dedicada a criar.

  Nelas, Niobe reuniu tudo o que já havia pesquisado e trabalhou criando algumas obras de exceção, condensando e retomando fases já abandonadas, e mostrando verdadeiras sínteses de seu mundo interior.

  É claro que a nomeação dessas obras é baseada numa observação subjetiva, mas pode com toda certeza (ainda que mais uma vez relativa…) ajudar a definir os ideais de um determinado comportamento estético e de uma vida dedicada, até as últimas conseqüências, em construir uma linguagem sólida e duradoura.

  Três décadas se passaram desde então, e a obra de Niobe continua quase secreta.

  Um olhar retrospectivo sobre essa produção parece indicar, porém, que se ela ainda está para ser descoberta, talvez isso se deva à sua complexidade enigmática, ao fato de escapar ou desviar dos cânones da arte moderna e de se constituir como uma arte singular, que desafia as interpretações e mantém incólume uma potência visual capaz de recusar a sua inscrição em qualquer movimento.

  A fortuna crítica da obra de Niobe é extensa e muita gente tentou decifrar seus quadros, desenhos, colagens, objetos. Mas percorrer as interpretações é fazer a experiência do labirinto: a leitura não nos permite progredir nem acumular conhecimento, tem-se sempre à sensação de uma primeira aproximação, de um recomeçar, de um tatear, porque há sempre uma objeção a impedir a classificação proposta, a indicar que a pintura sempre extrapola os parâmetros que poderiam levá-la a enquadrar se num “ismo”. Por outro lado, é patente que não há um “estilo”, mas uma espécie de “atravessamento” diagonal de muitos estilos.

  Com efeito, a pintura de Niobe é arcaica porque, como o homem pré-histórico das pinturas rupestres, ela busca fixar a passagem da imagem; e é contemporânea porque, ao reatar com o gesto primitivo num mundo já saturado de clichês devolve a imagem à dinâmica que lhe é própria, problematizando, portanto, a figuração e a visualidade modernas que haviam se firmado como conquistas e pareciam estabelecidas. Mas, atenção: é preciso deixar claro que não se trata de regressão, de voltar ao passado ou de revivê-lo, mas de fixar no presente à passagem da imagem, tal como ela se dá no contemporâneo.

  “Muita gente diz que meus trabalhos têm um pouco de africano, de indígena, de candomblé” – diz Niobe, em entrevista a Maria Ignez Corrêa da Costa, em 1969. Apenas na medida em que tudo isso possa fazer parte da formação de uma brasileira. ” Já ouvi me dizerem que sou primitiva. Apesar de autodidata, na pintura sei que não sou primitiva, mas apenas na essência de minha alma.”

Quase dez anos depois, em setembro de 1978, voltando ao assunto, a artista declara:

“Penso que sou uma primitiva de alma. (…) A variação da técnica na minha arte não é uma questão de fase, mas sim de estado de espírito que vem e vai. (…) Quando sinto a angústia diante do barro, então refugio-me no óleo, pinto quase com as mãos, é com a terra que estou lidando, fico quase em transe, amasso barro, imaginando- me no mato de pés na terra, realizando meus trabalhos com os elementos da própria natureza. Sinto tudo como uma coisa só: eu, a tela, a tinta, um mundo selvagem que nos envolve. Estousó, muito longe, criando, procurando no barro algo muito anterior à minha mãe. “Daí o calor que sinto emanar do óleo e sua textura.”

  As indicações de Niobe sobre a fatura de seu trabalho são valiosas porque revelam a pouca importância que atribui aos modelos, às formas e às fontes de uma suposta inspiração, em suma aos “motivos” ou ao “vocabulário visual” de sua pintura, contrariamente à grande atenção que confere à própria natureza do processo criativo. Com efeito, há uma espécie de exigência e de entrega que transformam o ato de pintar num imperativo, arrastando a artista a um estado extremo – como se ela fosse obrigada a pintar incondicionalmente o que vê: a emergência da imagem no campo da visão, tal como ela se mostra no bojo de um movimento cru, violento e selvagem, afetando diretamente o corpo, desmembrando a sua integridade e deslocando a personalidade. Como se o ato de imaginar prescindisse fundamentalmente da pessoa para poder se concretizar, como se a imagem só se manifestasse através de uma des-integração.

  Nesse sentido, vale a pena aproximar a descrição que Niobe faz de seu processo criativo do que Samuel Beckett denomina “fazer a imagem”, num pequeno e magnífico texto justamente intitulado L’image:

  “A língua se enche de barro então só há um remédio botá-la para dentro e revirá-la na boca o barro engoli-lo ou cuspi-lo questão de saber se é nutritivo e perspectivas sem ser levado a isso pelo fato de beber freqüentemente apanho um bocado dele é um de meus recursos conservo-o um bom momento questão de saber se engolido vai me alimentar e perspectivas que se abrem não são momentos ruins me consumo isso é tudo a língua sai fora rosa no barro que fazem as mãos enquanto isso sempre é preciso ver o que fazem as mãos pois bem a esquerda como vimos segura sempre o saco e a direita pois bem a direita depois de um tempo eu a vejo lá longe no final de seu braço alongado ao máximo no eixo da clavícula se que se abre e se fecha no barro se abre e se fecha assim se pode dizer ou melhor fazer é mais um de meus recursos esse pequeno gesto me ajuda não sei porque eu tenho assim uns truquezinhos que são muito úteis até quando colo às paredes sob um céu cambiante eu já devia ser esperto ela não deve estar tão longe mal chega a um metro mas eu a sinto longe um dia ela se vai sozinha sobre seus quatro dedos contando o polegar pois falta um não o polegar e me deixará vejo que ela arremessa seus quatro dedos para a frente como garras as pontas se enfiam puxam e assim ela se afasta através de pequenas recuperações horizontais é disso que gosto partir desse jeito pelas pontas e as pernas o que fazem as pernas ah as pernas e os olhos o que fazem os olhos com certeza fechados pois bem não pois de repente lá sob o barro eu me vejo eu digo mim como digo eu como diria ele porque isso me agrada eu me dou uns dezesseis anos e para cúmulo da felicidade faz um dia delicioso (…).”

  A partir daí o texto de Beckett passa a configurar a imagem e o seu movimento; e embora o faça de modo fulgurante, não precisa ser aqui considerado em sua totalidade. Para efeitos do que nos interessa, importa apenas perceber que a imagem surge de um corpo a corpo com o barro, com a matéria, a partir de perspectivas que se abrem quando o sujeito não é mais senhor de si, quando uma espécie de desarticulação conduz a uma autonomia da língua, dos dedos, dos olhos, das mãos, das pernas, dos órgãos e dos membros, quando passamos para uma outra dimensão. Instaura-se então uma intimidade espantosa com a matéria do mundo, que permitirá apreender a constituição da imagem no sutilíssimo desdobrar-se do contato dessa matéria com a visão.